Em linhas gerais, a desconsideração da personalidade jurídica é
exceção, cabível apenas em situações em que se afigure cabalmente demonstrado
que o ente abstrato vem sendo utilizado para perseguir objetivos contrários a
lei, de modo a ocultar a prática de fraudes ou simulações.
Sobre o tema, Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery in
“Código Civil comentado”, 6ª edição revista e atualizada até 28.3.2008, Ed.
Revista dos Tribunais, São Paulo, 2008, p. 249, esclarece que:
“Desconsideração da pessoa jurídica (disregard of legal entity)
consiste na possibilidade de se ignorar a personalidade jurídica autônoma da
entidade moral sempre que esta venha a ser utilizada para fins fraudulentos ou
diversos daqueles para os quais foi constituída, permitindo que o credor de
obrigação assumida pela pessoa jurídica alcance o patrimônio particular de seus
sócios ou administradores para a satisfação do seu crédito.”
A personalidade jurídica e a separação patrimonial dela decorrente são
véus que devem proteger o patrimônio dos sócios ou da sociedade,
reciprocamente, na justa medida da finalidade para a qual a sociedade se propõe
a existir.
Acerca da responsabilidade dos sócios e administradores da sociedade
pelas obrigações imputáveis à pessoa jurídica, aponta-se uma subdivisão da
desconsideração em duas categorias distintas: a teoria maior e teoria menor.
A teoria menor, relacionada às relações trabalhistas, tributárias, de
consumo e ambientais, não se baseia no artigo 50, do Código Civil, podendo o
magistrado se limitar a aferir a simples prova de que a personalidade jurídica
da empresa ré está impedindo o pagamento de suas obrigações junto aos
consumidores, independentemente da existência de fraude, desvio de finalidade
ou de confusão patrimonial, conforme regra do §5º, do artigo 28, do CDC, in
verbis:
"Artigo 28. O juiz poderá desconsiderar a
personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver
abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou
violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será
efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou
inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
(...)
§5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa
jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao
ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.", destacamos.
Quando se trata de relação de consumo, aplica-se a teoria menor da
desconsideração da personalidade jurídica.
"Ementa.
Agravo de Instrumento. Desconsideração da personalidade jurídica.Recurso
desprovido. 1. Não é nula a decisão sucintamente fundamentada. 2. De todo modo,
é possível aplicar-se ao agravo de instrumento a norma do art. 1013, § 3º., IV,
CPC de modo que a eventual decretação da nulidade da decisão censurada por
ofensa à regra do art. 489, § 1º., III, CPC em nada contribuirá para o desate
do recurso. 3. Em havendo relação de consumo, no tocante à desconsideração da
personalidade jurídica, incide a norma do art. 28, § 5º. CDC, que consagra a
teoria menor. 4. Destarte, em havendo inadimplência da devedora, deve ser
desconsiderada sua personalidade para incluir-se no polo passivo da relação
processual seus sócios. 5. Ademais, a prova é no sentido da dissolução
irregular da primeira agravante, o que corrobora a responsabilidade dos sócios.
6. Saliente-se que foi tentada por duas vezes a penhora on line e não se
localizaram bens, procedida à penhora portas a dentro. 7. Agravo de Instrumento
a que se nega provimento." Agravo de Instrumento nº
0046358-28.2017.8.19.0000, apreciado em sessão da 15ª Câmara Cível do TJ/RJ, de
relatoria do Des. Horácio dos Santos Ribeiro Neto, julgado em 21.11.2017.
Grifamos.
Entretanto, algumas decisões têm admitido que é necessário esgotar a
busca por bens para que seja deferida, mesmo em se tratando da teoria menor.
Quanto a teoria maior, o entendimento é de que é necessário que tenha
havido fraude, desvio de finalidade ou confusão patrimonial. Nesta hipótese
aplica-se o artigo 50, do Código Civil.
Além disso, é necessário o esgotamento da pesquisa por bens para que
seja deferido o avanço sobre os bens particulares dos sócios por se tratar de
medida excepcional.
O mero inadimplemento não autoriza a aplicação da medida extrema.
"Ementa.
AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO INDENIZATÓRIA EM FASE DE EXECUÇÃO - PESSOA
JURÍDICA - PENHORA INFRUTÍFERA - DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA -
APLICAÇÃO DA TEORIA MAIOR - INEXISTÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DO DESVIO DE FINALIDADE
OU DE CONFUSÃO PATRIMONIAL - INDEFERIMENTO - Indispensável a indicação de um
dos requisitos elencados no art. 50 do Código Civil para aplicação da
desconsideração da personalidade jurídica, sendo certo que a não localização de
bens para penhora não autoriza incidência da referida teoria. No caso, não
restou comprovado o desvio de finalidade, a prática de ato fraudulento ou de
confusão patrimonial com o intuito de obstar direito de terceiro, descabendo a
adoção de tal medida excepcional. Negado provimento ao recurso." Agravo de
Instrumento nº 0052457-14.2017.8.19.0000, apreciado em sessão da 17ª Câmara
Cível do TJ/RJ, de relatoria do Des. Edson Aguiar de Vasconcelos, julgado em
13.12.2017. Grifamos.
________________________________________________________
"Ementa.
Agravo de instrumento. Execução por título extrajudicial consubstanciada em
duplicatas com seu devido aceite. Indeferimento do pleito de desconsideração da
personalidade jurídica. Ausência de demonstração do desvio de finalidade do
contrato social ou má-fé dos sócios. Desconsideração da personalidade jurídica
que é medida excepcional, condicionada à presença dos requisitos legais,
ausentes na hipótese. Simples inadimplemento das obrigações que não enseja a
aplicação da teoria maior. Sociedade em pleno funcionamento. Precedentes TJRJ e
STJ. Recurso a que se nega provimento. " Agravo de Instrumento nº
0049660-65.2017.8.19.0000, apreciado em sessão da 5ª Câmara Cível do TJ/RJ, de
relatoria da Desª. Cláudia Telles de Menezes, julgado em 14.11.2017. Grifamos.
Finalmente,
deve ser observado o incidente processual previsto nos artigos 133 e seguintes
do Código de Processo Civil, como pacificado em Jurisprudência.
"Ementa.
AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE COBRANÇA EM FASE DE CUMPRIMENTO DE SENTENÇA.
UTILIZAÇÃO DE OBRA MUSICAL. RECEPÇÃO DE SINAIS DE RÁDIO. RETRANSMISSÃO EM
APOSENTOS DE HOTEL. DIREITO AUTORAL. REJEIÇÃO DE EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE.
IRRESIGNA- ÇÃO. DECISUM PROFERIDO QUANDO JÁ EM VIGOR O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO
CIVIL. HIPÓTESE EM QUE HOUVE ENCERRAMENTO DA ATIVIDADE DA EMPRESA EXECUTADA,
POR MEIO DE DISTRATO SOCIAL. IMPOSSIBILIDADE DE INCLUSÃO DE EX-SÓCIA NO POLO
PASSIVO DA DEMANDA MEDIANTE SIMPLES INTIMAÇÃO. OBRIGATORIEDADE DE OBSERVÂNCIA
DO INCIDENTE PREVISTO NOS ARTS. 133 A 137, DO CPC/15, PARA O EXAME DOS
REQUISITOS AUTORIZADORES DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA, A TEOR
DO DISPOSTO NO §4º, DO ART. 795, DO CITADO DIPLOMA LEGAL. SITUAÇÃO QUE NÃO SE
ADEQUA À EXCEÇÃO DE INSTAURAÇÃO DO ALUDIDO INCIDENTE, TAL QUAL O
REDIRECIONAMENTO DA EXECUÇÃO FISCAL, PREVISTO NO ART. 135, DO CTN. DECISÃO
REFORMADA. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO." Agravo de Instrumento nº
0010375-65.2017.8.19.0000, apreciado em sessão da 16ª Câmara Cível do TJ/RJ, de
relatoria do Des. Mauro Dickstein, julgado em 30.05.2017; Grifamos.
Existe ainda o instituto da desconsideração inversa personalidade
jurídica, onde se busca impedir a prática de transferência de bens pelo sócio
para a pessoa jurídica sobre a qual detém controle, afastando-se
momentaneamente o manto fictício que separa o sócio da sociedade para buscar o
patrimônio que, embora conste no nome da sociedade, na realidade, pertence ao
sócio fraudador.
"Ementa. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. DIREITO
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. DESCONSIDERAÇÃO INVERSA
DA PERSONALIDADE JURÍDICA. CABIMENTO. UTILIZAÇÃO ABUSIVA. COMPROVAÇÃO DOS
REQUISITOS. REVISÃO. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA N. 7/STJ. REQUERIMENTO DA PARTE
AGRAVADA DE APLICAÇÃO DA MULTA PREVISTA NO § 4º DO ART. 1.021 DO CPC/2015.
AGRAVO IMPROVIDO. 1. A jurisprudência do STJ, a fim de possibilitar a responsabilização
patrimonial da pessoa jurídica por dívidas próprias dos sócios, quando
demonstrada a utilização abusiva, admite a incidência da desconsideração
inversa da personalidade jurídica. 2. Na hipótese, segundo o acórdão recorrido,
foi demonstrada a utilização fraudulenta do instituto da autonomia patrimonial,
caracterizando o abuso de direito, assim, essa conclusão somente poderia ser
alterada mediante reexame do contexto fático-probatório, o que é obstado na
estreita via especial, ante o enunciado n. 7 da Súmula do STJ. (...) 4. Agravo
interno improvido. (AgInt no AREsp 1030790/DF, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO
BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 06/04/2017, DJe 18/04/2017)".
Também sobre a matéria, o eminente processualista e desembargador
Alexandre Câmara, na obra "O novo processo civil brasileiro. 2ª ed. São
Paulo: Atlas, 2016, p. 96-97", alude sobre a utilização do incidente de
desconsideração inversa, como a seguir destacado:
“O
regramento estabelecido pelo CPC para o incidente de desconsideração da
personalidade jurídica não se aplica apenas aos casos em que se pretenda
desconsiderar a separação entre a personalidade da sociedade e a do sócio a fim
de alcançar os bens deste para garantir o pagamento de dívidas daquela. Também
o contrário é possível, buscando-se a desconsideração para viabilizar a
extensão da responsabilidade patrimonial de modo a viabilizar que se alcancem
os bens da sociedade para garantir o pagamento das dívidas do sócio. É a
chamada ‘desconsideração inversa da personalidade jurídica’, que há muito é
acolhida no Direito brasileiro. Assim, seja diante de um requerimento de
desconsideração da personalidade jurídica propriamente dita, seja no caso de se
ter requerido a desconsideração inversa da personalidade jurídica,
aplicar-se-ão as regras extraídas dos arts. 133 a 137 do CPC.”, grifamos.
"Ementa. AGRAVO DE INSTRUMENTO.
PROCESSUAL CIVIL. Ação de divórcio. Desconsideração inversa da personalidade
jurídica decretada de ofício. Descabimento. Instituto regido por procedimento
próprio a partir do advento do novo CPC. Imperativa instauração de incidente
processual, mediante provocação, com prévia intimação das partes e
franqueamento de dilação probatória. Providência olvidada pelo juízo de
primeiro grau. Inobservância do devido processo legal. Ofensa aos princípios do
contraditório e da ampla defesa. Decisão cassada. Recurso provido." Agravo
de Instrumento nº 0068483-87.2017.8.19.0000, apreciado em sessão da 18ª Câmara
Cível do TJ/RJ, de relatoria do Des. Carlos Eduardo da Rosa da Fonseca Passos,
julgado em 28.02.2018. Grifamos.
________________________________________________________
"Ementa. Agravo de Instrumento.
Execução de alimentos. Interlocutória que indeferiu a desconsideração inversa
da personalidade jurídica, ao entendimento de que o executado conta com
patrimônio pessoal capaz de suportar a execução; deferimento de penhora on line
sobre tais bens. Desconsideração inversa que exige a instauração de incidente
específico, em que se garantam à sociedade empresária a ampla defesa e o
contraditório. Precedentes. Recurso a que se nega provimento. " Agravo de
Instrumento nº 0063901-44.2017.8.19.0000, apreciado em sessão da 2ª Câmara
Cível do TJ/RJ, de relatoria do Des. Jessé Torres Pereira Júnior, julgado em
24.01.2018. Grifamos.
No mesmo sentido é a Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.
Vejamos.
"Ementa. CIVIL E PROCESSUAL CIVIL.
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO MONITÓRIA. CONVERSÃO. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. COBRANÇA.
HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS CONTRATUAIS. TERCEIROS. COMPROVAÇÃO DA EXIS-TÊNCIA DA
SOCIEDADE. MEIO DE PROVA. DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA.
OCULTAÇÃO DO PATRIMÔNIO DO SÓCIO. INDÍCIOS DO ABUSO DA PERSONALIDADE JURÍDICA.
EXISTÊNCIA. INCIDENTE PROCESSUAL. PROCESSAMENTO. PROVIMENTO. 1. O propósito
recursal é determinar se: a) há provas suficientes da sociedade de fato
supostamente existente entre os recorridos; e b) existem elementos aptos a
ensejar a instauração de incidente de desconsideração inversa da personalidade
jurídica. 2. A existência da sociedade pode ser demonstrada por terceiros por
qualquer meio de prova, inclusive indícios e presunções, nos termos do art. 987
do CC/02. 3. A personalidade jurídica e a separação patrimonial dela decorrente
são véus que devem proteger o patrimônio dos sócios ou da sociedade,
reciprocamente, na justa medida da finalidade para a qual a sociedade se propõe
a existir. 4. Com a desconsideração inversa da personalidade jurídica, busca-se
impedir a prática de transferência de bens pelo sócio para a pessoa jurídica
sobre a qual detém controle, afastando-se momentaneamente o manto fictício que
separa o sócio da sociedade para buscar o patrimônio que, embora conste no nome
da sociedade, na realidade, pertence ao sócio fraudador. 5. No atual CPC, o
exame do juiz a respeito da presença dos pressupostos que autorizariam a medida
de desconsideração, demonstrados no requerimento inicial, permite a instauração
de incidente e a suspensão do processo em que formulado, devendo a decisão de
desconsideração ser precedida do efetivo contraditório. 6. Na hipótese em
exame, a recorrente conseguiu demonstrar indícios de que o recorrido seria sócio
e de que teria transferido seu patrimônio para a sociedade de modo a ocultar
seus bens do alcance de seus credores, o que possibilita o recebimento do
incidente de desconsideração inversa da personalidade jurídica, que, pelo
princípio do tempus regit actum, deve seguir o rito estabelecido no CPC/15. 7.
Recurso especial conhecido e provido." REsp 1647362/SP, Rel. Ministra
NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 03/08/2017, DJe 10/08/2017;
grifamos.
Esses são, em linhas gerais, os requisitos para a aplicação do
instituto da desconsideração da personalidade jurídica, suas espécies e
características.
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